Brasília, 64 Anos de Esporte: Um tributo à Carmem de Oliveira
Temática: Gestão e Memória do Esporte
Joseane Salmito de Araújo Sitônio
Resumo:
Brasília, 64 anos de história, é tempo de comemorações e recordações. Valorizar a memória, sobretudo que espelha o caráter coletivo do desenvolvimento da cidade tornou-se uma necessidade e realidade. O esporte também faz parte da história de Brasília, a cidade formou atletas mundialmente conhecidos e viveu momentos marcantes do esporte brasileiro. No entanto, muito destas histórias se perdem a cada dia. Neste contexto, esta pesquisa teve como objetivo registrar e analisar o início da carreira da brasiliense Carmem de Oliveira. O instrumento utilizado foi um questionário estruturado, buscando facilitar as lembranças e peculiaridades da trajetória esportiva da ex-atleta. Os resultados demonstraram as dificuldades enfrentadas na época, bem como, os sentimentos e frustrações da ex-atleta pela ausência de políticas públicas que valorizem a sua história e de outros ícones do esporte brasiliense. Concluímos que, por meio da memória oral, é possível registrar e resguardar a história de atletas e as personalidades da história do esporte de Brasília que possuem um “capital simbólico” de grande valia para a população favorecendo, com o seu passado, o fortalecimento da identidade esportiva da população brasiliense e forte contribuição para a gestão do esporte na capital federal.
Palavras-chaves: História do esporte, gestão do esporte, atletismo, ex-atleta.
Abstract:
Brasília, 64 years of history, it is time for celebrations and memories. To valorize the memory, especially that demonstrate the collective the development of the city, has become a necessity and reality. The sport is also part of the history of Brasilia, the city formed renowned world athletes and lived important moments of brazilian sport. However, much of these stories are lost every day. In this context, this study had with objective to remember and analyze, in the qualitative form, the beginning of Carmen de Oliveira career. The instrument used was a structured questionnaire, seeking to facilitate the memories and peculiarities of the sports career of athlete. The results demonstrated the difficulties faced at the time, as well as the feelings and frustrations of ex-athlete by the absence of public policies that value their history and other icons of Brasilia sport. We conclude that over of oral memory, this work with the perception that the personalities of the sport history of Brasilia have a “symbolic capital” of great value for the population, favoring with his past, strengthening the sporting identity of Brasilia population at present.
Keywords: Sport history, sport management, athletics, former athlete.
1. Introdução
Atualmente em Brasília existem equipes e atletas de representatividade nacional, é o caso do basquetebol, voleibol, futebol, atletismo, natação, saltos ornamentais e de diversas outras modalidades esportivas que enaltecem o nome da Capital Federal no cenário esportivo nacional.
Este momento de projeção esportiva não é fruto somente do presente, foi construído pela nossa histórica relação com o esporte. Brasília viveu momentos que jamais devem ser esquecidos, como: a primeira corrida automobilística “Mil Quilômetros de Brasília (1962)”, a inauguração do ginásio Presidente Médici (1972), jogo de futebol do Santos de Pelé no, hoje demolido, Estádio Pelezão (1967), os jogos escolares brasileiros – JEB’s que revelaram muitos talentos Olímpicos para o Brasil e muitos outros marcantes eventos esportivos que aconteceram na Capital Federal. Poucos conhecem ou lembram-se destes momentos.
Brasília também formou atletas que nasceram ou iniciaram sua carreira na Capital Federal. São esportistas com participações expressivas em diversas competições, inclusive com conquista de medalhas Olímpicas, recordes e títulos mundiais. Personalidades que levaram o nome da cidade para diversas partes do mundo: Nelson Piquet (automobilismo), Oscar, Pipoca, Karla (basquetebol), Tande, Leila, Ricarda, Carlile, Paula Pequeno (voleibol), Carmem de Oliveira, Joaquim Cruz, Marilson Gomes, Hudson de Souza (atletismo) Warley, Lúcio, Kaká, Washington e Hendrick (futebol), Mariana Ohata, Leandro Macêdo (triatlon), Luciano Correia, Erica Miranda (Judô), Rebeca Gusmão (natação), Hugo Parisi e Cesar Castro (saltos ornamentais), Caio Bomfim (marcha atlética) e centenas de outros do passado e do presente.
Quantos destes atletas, quantas conquistas, quantas vitórias, quantos embates dramáticos são desconhecidos ou não caíram no esquecimento? Talvez, apenas um reduzido número de nomes seja lembrado. A população de Brasília desconhece o seu passado esportivo e não tem acesso à história da formação do esporte brasiliense. Um triste fenômeno de desvalorização da memória esportiva que se repete e deixa suas sequelas em todo Brasil.
No entanto, objetos importantes, imagens, documentos, histórias orais, lembranças de técnicos, profissionais de Educação Física, atletas e dirigentes, um rico acervo da formação de esporte de Brasília se perde a cada dia. Testemunhos da história do esporte da Capital Federal, se não resgatado e preservado, se perderá num futuro próximo.
Por este importante papel social que o esporte desempenha, em especial, na sociedade brasiliense, o presente estudo tem como objetivo registrar e analisar, por meio da história oral, o início da carreira da atleta brasiliense Carmem de Oliveira. Dessa forma, contribuir para o resgate, preservação e gestão da memória do esporte de Brasília.
2. Revisão de leitura
O esporte não é um fruto da sociedade moderna, nos atinge diretamente por ter sido consolidado em um contexto histórico, por isso, compreende tantas riquezas e se insere em aspectos da vida humana e da sociedade. É resultado de conceitos e práticas que foram estruturados ao longo do tempo e seus significados são absorvidos na atualidade, tornando-se parte da cultura do nosso povo.
Tubino (1989) afirma que o esporte é um patrimônio herdado e a sociedade deve dele servir-se e depois transmiti-lo acrescido das experiências desenvolvidas, valorizando todo o lado que favorece o fortalecimento da identidade coletiva.
Gomes (2003) corrobora com o pensamento de Tubino (1989), quando relata que o papel do esporte na sociedade moderna está fundamentado em questões patrimoniais, culturais e identitários, faz parte da memória coletiva de um povo. É símbolo que move multidões e que cria opiniões. É um bem, herdado, que deve ser tratado como um tesouro da nossa sociedade. Valorizar e preservar as conquistas, os atletas, os eventos que marcaram uma época fazem parte do fortalecimento da identidade coletiva.
Dessa forma, entendemos que a memória exerce importante função de construção e preservação da identidade de um povo, por isso, patrimônios, museus, lendas, mitos, objetos, lugares, acontecimentos são e devem ser preservados. As manifestações esportivas também fazem parte da história de um povo, possui um rico conteúdo histórico em diferentes tempos da memória coletiva.
Segundo Bosi (2006) a importância da preservação da memória em tempos de globalização e da crescente demanda do mercado econômico insiste em transformar o mundo em uma aldeia global, tendo como consequência o esquecimento e a desvalorização do passado e, em muitas vezes, deixamos importantes aspectos de identificação coletiva para segundo plano. A memória e o passado serão sempre importantes “hoje”.
A autora ainda afirma que um dos vários caminhos de preservação da memória está nas narrativas. A história oral pode certamente ser um meio de transformar tanto conteúdo, como finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras.
A história oral possibilita a construção e a reconstituição da história por meio dos relatos individuais ou coletivos. O fato de ser considerada um campo multidisciplinar possibilita algumas disciplinas, entre elas a antropologia, psicologia, psicanálise, sociologia e diversas outras áreas do saber (CHAUI, 2007).
3. Metodologia
Os procedimentos metodológicos que norteiam este trabalho estão fundamentados na História Oral.
Segundo Bosi (2006), a história oral se situa em meio ao desenvolvimento dos métodos qualitativos de investigação.
Para Minayo (2000), a investigação qualitativa responde a questões muito particulares, se preocupando com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, emoções, crenças, valores e atitudes, correspondente a um espaço não perceptível e não contável em equações e por meios estatísticos.
4. Sujeito da pesquisa
O sujeito da pesquisa foi a ex-atleta brasiliense Carmem Souza de Oliveira Furtado. Trata-se de uma atleta nascida em Sobradinho, no Distrito Federal no ano de 1965, conhecida como Carmem de Oliveira. Foi a primeira brasileira a vencer a prova feminina da Corrida de São Silvestre (1995) e bateu o recorde sul-americano da maratona, com o tempo de 2h27m41s, conquistados na Maratona de Boston de 1994. Participou dos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992, na prova dos 10.000 metros e nos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996, na maratona.
Teve a sua primeira participação atlética em 1982 em uma prova escolar. Sendo que, no ano seguinte, iniciou o seu treinamento de forma sistemática e participou do Campeonato Brasileiro de Atletismo juvenil, vencendo a prova de 3.000 metros rasos e estabelecendo um novo recorde.
A atleta é recordista brasiliense, brasileira e sul-americana; quatro vezes vice campeã na corrida internacional de São Silvestre (São Paulo); a primeira fundista brasileira a participar de um Campeonato Mundial de Atletismo (Japão) e de uma Olimpíada (Barcelona); campeã Íbero-americana; campeã da Corrida Internacional de São Silvestre (1995) e portadora de muitos outros títulos atléticos.
No quadro de recordes da Federação Brasiliense de Atletismo encontram-se registrados os diversos recordes estabelecidos por Carmem de Oliveira, nas categorias juvenil e adulto.
5. Resultados e discussão
Crítica inicial:
“Antes de falar sobre meu início, quero falar que os grandes nomes do esporte em Brasília se perdem muito facilmente. Em outros centros acho que a valorização é melhor, porque aqui nós temos uma força política muito forte, parece que os nomes da políticas desejam que ofusquem os grandes nomes do esporte do DF (Carmem de Oliveira)”.
Na fala e expressões da atleta, percebe-se um sentimento de desvalorização pelo sistema político brasileiro, pela falta de valorização dos seus resultados, do seu empenho em representar a cidade que hoje despreza seu passado.
Godoy (1995) destaca que toda a arte do orador consiste em dar àqueles que o ouvem, a ilusão de que as convicções e os sentimentos que ele desperta neles não lhes foram sugeridos de fora, que eles nasceram deles mesmo, que ele somente adivinhou o que se elaborava no segredo de suas consciências e não lhes emprestou mais que sua voz.
As lembranças do início da carreira:
“Faz tanto tempo, mas eu me lembro bem, eu estava na 8o série, bem atrasada, mas eu acho que estava concluindo a 8o série. Um professor de Educação Física disse quem participasse de uma corrida, eu acho que ficaria livre da prova escrita, seria apenas a nota do resultado obtido e representaríamos a escola, então eu troquei a prova teórica por a prova prática, então, corri, ganhei a corrida e a nota (Carmem de Oliveira).”
As lembranças dos fatos narrados pela ex-atleta nem sempre são uma plena memória, são necessários esforços para reconstituir os fatos ocorridos, tais dificuldades são esclarecidas por Halbwachs (2006):
“[…] a medida em que os acontecimentos se distanciam,temos o hábito de lembrá-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais se destacam às vezes alguns entre eles, mas que abrangem muitos outros elementos, sem que possamos distinguir um do outro, nem jamais fazer deles uma enumeração completa […]”
(…) o Sena, meu técnico, me viu correndo e me convidou para treinar, muita gente lembra que convivia comigo deste dia (…)
(…)meu início foi uma opção meia que forçosa pela paixão do meu treinador, ele falou Carmem você vai fazer seu 2o grau aqui e eu quero que você treine, eu te vi correndo (…) então não foi uma coisa tão voluntária como acontece hoje, foi uma paixão de um treinador que me fez pensar no esporte, eu acho que foi isso (…)
(…) por ser um apaixonado pelo atletismo, me convidou para treinar e fazer parte do grupo, acho que tudo foi fruto do acaso, sem uma política pré estabelecida ou então foi providência divina (…)
Os lapsos de memória da entrevistada não significam a falta de lembrança dos fatos, apenas as ordens podem não estar corretas. Halbwalchs (2006) descreve que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e este mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros meios.
Para Bosi (2006) a veracidade do narrador não importa: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial e se as lembranças às vezes afloram ou emergem, quase sempre são uma tarefa difícil, uma paciente reconstituição.
“No começo era uma situação delicada porque eu fui mãe solteira aos 15 anos de idade, então quando eu comecei a correr eu já estava com 17 anos, você já sendo mãe com toda essa questão escolar atrasada, tudo isso já dificulta um pouco”.
“O atletismo acaba puxando pessoas com dificuldade financeira pela praticidade que é praticar o atletismo, você não precisa de nada a não ser um short, um tênis que tiver no pé, no primeiro momento não faz diferença, isso facilitou minha opção, pois vinha de uma família humilde com nove irmãos e um pai que era pedreiro”
“todas as situações adversas pra você se tornar um campeão ou toda situação totalmente favorável pra você se superar, meu pai queria que eu trabalhasse e treinar só depois do horário do meu trabalho (…) então tudo era fracionado porque eu nunca falei daqui 5 anos eu estarei ganhando, não tinha sonhos, pensava em correr só por três meses e representa nossa escola nos jogos escolares”.
(…) eu tinha vergonha, imagina em 81, 82, 83, imagina uma mulher de short correndo por ai é um absurdo, tanta coisa para fazer, tanta roupa para lavar e uma mulher correndo por aí, essa é a questão cultural da época (…)
“Ganhei um trabalho na monitora de um projeto, todos que treinavam foram contratados, eu me lembro bem quando eu consegui meu primeiro resultado para representar o DF (Carmem de Oliveira)”.
(…) uma vez eu tinha de viajar e lembro que o Sena perguntou para mim, você falou com seu chefe? Eu falei, eles não deixarão ir não, mentira eu nem tinha falado, fiquei com medo de perder meu emprego. Aí o Sena foi ao meu trabalho e falou com o meu chefe que eu iria representar Brasília, todos acharam uma maravilha, era uma honra para todos. Aí eu viajei e venci a prova, venci a campeã brasileira e bati o recorde sul americano juvenil, isso eu não esquecerei jamais (…).
(…) no ano seguinte fui participar da corrida de São Silvestre e fiquei em segundo lugar, fui a primeira brasileira a subir neste pódio (…) ninguém acreditava no resultado (…) fui taxada de ter cortado caminho, pois eu não era conhecida, somente após as confirmações de outros técnicos que conheciam meu potencial, me levaram ao pódio. Depois deste resultado, definitivamente, estava no mundo do esporte (…)
Entendemos que novos significados alteram o conteúdo e o valor da situação vivida. No outro extremo, se a vida social ou individual estagnou, é provável que os fatos lembrados tendam a conservar o significado que tinham para os sujeitos no momento em que os viveram.
Bosi (2006) ressalta que sempre “fica” o que significa. E fica não do mesmo modo: às vezes quase intacto, às vezes profundamente alterado. A transformação seria tanto mais radical quanto mais operasse sobre a matéria recebida a mão-de-obra do grupo receptor.
Conclusão
Levando em consideração que o nosso objetivo foi registrar e analisar a memória da ex-atleta brasiliense da modalidade atletismo – Carmem de Oliveira, destacamos que registramos significativas narrativas, que foram analisadas com base no pensamento de importantes autores do tema memória social. Entendemos que a ex-atleta Carmem de Oliveira tem seu início de carreira semelhante a diversos outros atletas do passado e do presente.
A análise das narrativas proporcionaram conhecer e compreender os valores de um grupo especial – os ex-atletas e como se sentem distantes de um função social, digna de campeões. Acreditamos que os ex-atletas, podem servir como motivadores geracionais, seja em programas esportivos sociais ou de rendimento. Seus resultados e memórias devem ser preservados e inseridos na cultura brasiliense promovendo um reconhecimento e agradecimento aos expoentes esquecidos e/ou desconhecidos dos 64 anos do esporte Brasília.
Referências
TUBINO, M.J.G; PARENTE FILHO, M.S; MELO FILHO, Álvaro. Esporte, Educação Física e Constituição. São Paulo: Ibrasa, 1989.
GOMES, C.M. Dumazedier. Os estudos do lazer no Brasil: breve trajetória histórica. Universidade Federal de São João Del Rei. São João del Rei: UFSJ, 2003.
BOSI, Ecléa. “Sugestões para um jovem pesquisador”. In: O tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia Social . 2ª ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2007
MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7.ed., São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2000.
GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. RAE – Revista de Administração de Empresas, São Paulo, 1995. HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 2006.